Inevitável. Sempre por esta época do ano, quando a tevê e os jornais nos bombardeiam com propagandas apelativas sobre o Dia dos Pais, me pego a pensar no velho Bob Lira. Mais especificamente, fico a recordar a última vez em que o vi e, não por coincidência, a última vez em que estive em Massapê, a cidade na qual meu pai tinha o umbigo enterrado e onde hoje, também, descansam os seus ossos.
Ele já estava bem doente, o organismo depauperado pelo câncer de pâncreas que o levaria deste mundo. A moléstia, ele próprio reconhecia, era o resultado de uma vida de poucos cuidados. Os hectolitros de aguardente que havia ingerido desde muito moço terminaram por cobrar-lhe o preço. Admiro-me agora que ele também não tenha sofrido com alguma complicação pulmonar, a despeito das toneladas de nicotina que devia acumular no peito.
Quando soube que ele estava bem mal, fui visitá-lo, já desconfiado. Pelo que minhas tias haviam narrado ao telefone, aquela seria uma viagem de despedida. Durante as quatro horas do percurso entre Fortaleza e Massapê, fui juntando os cacos da memória, tentando costurar os fiapos das lembranças, buscando reconstituir a imagem de meu pai, sempre tão ausente, tão distante, tão largado de tudo e de todos – principalmente de si mesmo.
Lembrei das moedas escondidas por ele no fundo da mala, para que os filhos, depois da festa por sua chegada de mais uma longa viagem, pudessem brincar de procurá-las em uma espécie de caça ao tesouro. Lembrei também das muitas vezes em que o vi embriagar-se sozinho no sofá vermelho da sala, entornando goles generosos de cachaça, ao som de tangos, sambas-canções e boleros rasgados. Lembrei ainda dos versos que declamava, das doces mentiras que contava, do seu alucinado medo de alma penada.
Enfim em Massapê, quando de longe avistei o casarão de meus avós paternos, vislumbrei também a figura de alguém em pé na varanda, bem próximo à porta principal, logo acima dos degraus que levavam ao portãozinho de ferro pintado de branco. Imaginei que era meu pai que já me aguardava, ansioso, pois eu havia ligado no dia anterior para dizer que chegaria no primeiro ônibus da tarde. Porém, logo uma dúvida me assomou. Aquela pessoa plantada na fachada da casa parecia bem menor e ainda mais frágil do que a imagem que eu havia guardado de meu pai desde o nosso último encontro em Massapê.
Depois de caminhar algumas dezenas de metros, fui percebendo que, sim, realmente era ele. Estava bem mais magro, constatei, depois de percorrer alguns passos em direção à casa. Ele estava com os ombros mais curvados, reparei, após distância menor. O rosto parecia ainda mais enrugado, verifiquei, ao me aproximar do portão. Meu pai não desceu os seis ou sete degraus que nos separavam para vir ao meu encontro. Compreendi que aquilo exigiria dele um esforço que o velho Bob Lira não podia mais se dar ao luxo de me oferecer.
Lá estava eu diante de meu pai ou, pelo menos, do que a vida fizera dele. Procurei não abraçá-lo com muita força, com medo de que suas clavículas, cujos contornos aparentes se desenhavam por baixo da camiseta encardida, se quebrassem em minhas mãos. A barriga dele parecia inflada, um par de olheiras adornava-lhe a face. Naquela tarde, conversaríamos amenidades, trocaríamos novidades a respeito da família, evitaríamos assuntos que despertassem emoções demasiadamente fortes.
No começo da noite, enquanto ainda palestrávamos abobrinhas embalados em confortáveis cadeiras de balanço, um velho amigo de meu pai passou por lá para visitá-lo. Depois das apresentações de praxe, o recém-chegado olhou para mim com ar condoído e, em seguida, soltando um suspiro, alvejou meu pai com um olhar de censura. “Seu pai está assim porque quis”, disse-me o visitante, enquanto abanava a cabeça de um lado para outro, em sinal de reprovação. “O Bob bebeu muito, fumou demais, raparigou feito um demônio”, comentou, com o sotaque tipicamente sertanejo.
Quando em seguida o homem me informou que era quase vinte anos mais velho de que meu pai – apesar de na verdade aparentar ter apenas a metade da idade dele -, tomei um susto. Postos lado a lado, aqueles dois indivíduos protagonizavam um doloroso contraste. Um, mais idoso, falante, lépido e fagueiro; o outro, bem mais jovem, alquebrado, a voz rouca, mal conseguia sustentar o peso do próprio corpo. Durante os vários minutos em que o homem continuava a tagarelar e a desfiar toda a sua catilinária, meu pai permaneceu calado, a cabeça pendida sobre o peito, a boca fechada, a comissura dos lábios voltada para baixo.
De súbito, alguns instantes depois, vi Bob Lira aprumar-se na cadeira, endireitar o pescoço, estufar o peito, pôr o dedo em riste e encarar o amigo com impressionante firmeza. Percebi que ele procurara encontrar, sabe-se lá como, sabe-se lá onde, alguma força misteriosa dentro de si mesmo, uma última centelha de vida que fosse, para responder às recriminações que lhe eram atiradas assim ao rosto.
“E você, heim, seu filho de papa com freira? Está assim todo pimpãozinho também porque quis”, esbravejou meu pai para o sujeito. “Você nunca provou um cigarro, nunca bebeu um gole de bebida, nunca fez uma mulher gemer de verdade na cama. Sempre viveu acuado na barra da saia de sua mãe, aquela pobre velhota que talvez tenha morrido de desgosto por ter criado um cabra frouxo como você”, desabafou.
O homem arregalou os olhos, deu boa noite e saiu de fininho, sem querer mais conversa. Fiquei então olhando para meu pai, atônito. Eu estava ainda um tanto quanto abismado com aquela inesperada virada de mesa. Porém, não demorou muito e ele logo tornou a debruçar o queixo sobre o peito, respirou fundo, pôs as mãos sobre as pernas e voltou a mergulhar no silêncio. Pelos cantos da boca, enquanto ressonava, parecia sorrir. Aquele rompante e aquele meio sorriso foram as últimas lembranças que guardei de meu pai. Semanas depois, já em casa, recebi a notícia de que ele havia morrido.
Combinei com meu irmão que iríamos ao enterro em Massapê. Mas confesso que fiquei feliz quando o carro pifou bem na hora de pegarmos a estrada. Não lembro o motivo pelo qual o automóvel não quis mais ligar o motor. Só sei que, por causa disso, não cheguei a ver meu pai morto. Nunca mais voltei a Massapê. Jamais botei os olhos no túmulo de meu pai. Preferi guardar aquela derradeira imagem dele para sempre: um homem que se orgulhava de ter vivido todos os dias que lhe foram possíveis viver. É este o Bob Lira que ficou vivo, idealizado, em minhas retinas, em minha saudade e em minha dolorida memória.
Feliz Dia dos Pais, Bob Lira
.Lira Neto
(Texto publicado originalmente no jornal Diário do Nordeste em 6 de agosto de 2010)
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